RETROSPECTIVA 2019
Em razão da pandemia do coronavírus, atrasamos um pouco a chegada da já tradicional Retrospectiva do Observatório, em que destacamos as principais decisões do Supremo, no âmbito do Direito Processual Civil, proferidas no ano anterior. Separamos, desta vez, sete julgados que deram o tom da Corte em relação à matéria, concentrados no semestre final de 2019. Vamos a eles.
Em meados de agosto, o Tribunal fixou importante baliza sobre a legitimidade para a propositura de reclamação. Naquela oportunidade, julgava-se o Agravo Regimental na Reclamação 31.937, ajuizada em face de pronunciamento da justiça estadual que, em ação declaratória, contrariou a autoridade do que fora decidido anteriormente em writ julgado pelo Supremo. A reclamação foi proposta por pessoa que não havia sido parte na relação processual originária.
Em defesa da legitimidade, o Min. Rel. Alexandre de Moraes pontuou que, embora não tivesse sido parte no primeiro processo, a reclamante figurava como terceira interessada na ação em que fora proferida a decisão impugnada, de modo que lhe seria franqueada a via processual adotada. O Min. Luiz Fux, no mesmo sentido, assinalou que a reclamante se encaixaria no conceito de “parte interessada” a que se refere o artigo 988 do Código de Processo Civil, permitindo o ajuizamento da reclamação. Por outro lado, o Min. Marco Aurélio, vencido, defendeu que falecia legitimidade à reclamante, já que ela não participou da relação subjetiva no processo de origem.
No dia 28 do mesmo mês, a Min. Rosa Weber, ao julgar pedido liminar no RHC 173.332, definiu, em juízo perfunctório, que não havia ilegalidade ou abuso de poder na decisão que determinou a apreensão de passaportes como medida coercitiva atípica. No caso concreto, apesar de terem sido condenados ao pagamento de indenização por dano ambiental na ordem de R$ 800.000,00 (oitocentos mil reais), não houve pagamento voluntário da dívida pelos executados, e tampouco restaram frutíferas a instituição de hipoteca judicial sobre imóvel e a tentativa de bloqueio online de valores via bacenjud.
Tal medida foi justificada com base no fato de que “os recorrentes adotaram postura incompatível com a obrigação processual das partes, justificando a intervenção excepcional em suas esferas jurídicas com o fito de assegurar o cumprimento de ordem judicial”. Entretanto, não foi possível um completo desenvolvimento da fundamentação hábil para a apreensão de passaporte, eis que o referido recurso foi julgado prejudicado, diante da celebração de acordo entre os recorrentes e o Ministério Público.
Outra decisão de relevo foi a prolatada no início de setembro pelo Min. Luís Roberto Barroso, ao analisar a medida cautelar postulada na ADPF 615. Ali, o Ministro determinou, ad referendum do Plenário, a suspensão de todos os processos, em qualquer fase – incluindo até mesmo a execução de decisões transitadas em julgado –, que envolvessem a extensão da Gratificação de Atividade de Ensino Especial (GAEE) a professores que não atendiam ou não atendam exclusivamente a alunos portadores de necessidades educativas ou em situação de risco de vulnerabilidade[1].
Ao analisar a presença dos requisitos para a concessão de medida liminar, o Min. Relator entendeu que seria possível impugnar o cumprimento de sentença com fundamento na declaração de inconstitucionalidade da lei ou do ato normativo que serve de base para o título executivo judicial, mesmo que a decisão do Supremo seja posterior ao trânsito em julgado. O Ministro destacou, nessa linha, que embora o princípio da coisa julgada seja importante, “não se pode conferir a ele uma sobrevalorização que o torne hierarquicamente superior a outros princípios constitucionais, especialmente o da supremacia da constituição”. Também pontuou, e é importante frisar, que “se revela plausível o argumento trazido na inicial no sentido de que as decisões definitivas de mérito, proferidas pelos Tribunais locais, nas ações diretas de inconstitucionalidade, são suficientes para a arguição de inexequibilidade de títulos executivos judiciais de que trata o art. 535, §§5º e 8º, do CPC”.
Em 09 de outubro, o Supremo fixou importante tese de repercussão geral no âmbito do processo coletivo, ao definir que “o Ministério Público tem legitimidade para a propositura da ação civil pública em defesa de direitos sociais relacionados ao FGTS” (Tema 850). No julgamento do RE 643.978, o Plenário decidiu por unanimidade, nos termos do voto do Min. Rel. Alexandre de Moraes, que o Parquet detém legitimidade constitucional para provocar o Poder Judiciário na hipótese, por ser “o paladino dos excepcionais interesses individuais homogêneos de elevada robustez social”. Essa decisão, portanto, foi tratada como um consectário lógico da tese já firmada no Tema 471, segundo a qual “com fundamento no art. 127 da Constituição Federal, o Ministério Público está legitimado a promover a tutela coletiva de direitos individuais homogêneos, mesmo de natureza disponível, quando a lesão a tais direitos, visualizada em seu conjunto, em forma coletiva e impessoal, transcender a esfera de interesses puramente particulares, passando a comprometer relevantes interesses sociais”.
No dia seguinte, ao analisar a Pet 8.245, o Min. Dias Toffoli não conheceu do Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas que o requerente pretendia ver instaurado diretamente no Pretório Excelso. Em sua decisão, O Presidente da Corte explicou que o Supremo Tribunal Federal não detém competência originária para processar e julgar IRDR e que o incidente deveria ser instaurado perante o tribunal estadual ou federal a que o juiz da causa estiver vinculado, uma vez que “as hipóteses de ações, recursos e incidentes da competência da Suprema Corte estão taxativamente disciplinadas no art. 102 da Lei Maior”.
Em novembro foram julgados os dois últimos casos que serão examinados nesta Retrospectiva. No dia 12, ao analisar a Rcl 26.874 AgR, a Primeira Turma definiu, seguindo o voto do Min. Rel. Marco Aurélio, que “a erronia na observância de pronunciamento do Supremo formalizado, em recurso extraordinário, sob o ângulo da repercussão geral, enseja, esgotada a jurisdição na origem considerado o julgamento de agravo, o acesso ao Supremo mediante reclamação”. Ao negarem provimento o agravo regimental, os Ministros mantiverem decisão monocrática que admitiu reclamação interposta contra decisão que havia aplicado indevidamente, nos autos de recurso extraordinário, precedente do STF fixado em repercussão geral[2]. O julgamento do agravo interno, portanto, implica no esgotamento da jurisdição de origem, permitindo o manejo da reclamação.
Por fim, no dia 26, a Segunda Turma, por maioria, ao julgar a Rcl 15.551 AgR, definiu que é do STF a competência para apreciar ação ordinária ajuizada contra ato do CNJ. O órgão fracionário pontuou que a CRFB/88 conferiu ao Conselho Nacional de Justiça a competência para exercer o controle de atuação administrativa do Poder Judiciário, de modo que o julgamento das questões relativas ao desempenho das atribuições do CNJ compete ao Supremo, inexistindo restrição ao instrumento processual a ser utilizado.
É importante ressaltar que o STF havia sedimentado, no segundo semestre de 2014, que a sua competência para julgar atos do CNJ limitar-se-ia a ações mandamentais (Questão de Ordem na ACO 1680 AgR e na AO 1814). Contudo, pontuou o Min. Gilmar Mendes em seu voto que essa jurisprudência começou a ser revista em 2017, especialmente em relação às ações que digam respeito a atos do CNJ relacionados às suas competências constitucionais. Tais demandas envolvendo a “atividade-fim” do CNJ, como ficou consignado na ementa do acórdão que julgou o Agravo Regimental em questão, seriam de competência do Supremo, sem importar a via utilizada.
Como se vê, 2019 foi um ano repleto de importantes decisões relativas ao Direito Processual Civil no âmbito da mais alta Corte do país. Fiquemos, agora, atentos às que já começam a surgir no ano de 2020.
[1] A ADPF 615 tem por objeto decisões proferidas por Juizados da Fazenda Pública do Distrito Federal que rejeitaram arguições de inexequibilidade de sentenças transitadas em julgado. Isso ocorreu apesar de o art. 20, I, da Lei Distrital nº 5.105/2013, que garante a GAEE aos professores que atendam exclusivamente a alunos portadores de necessidades educativas ou em situações de risco ou vulnerabilidade, ter sido declarada constitucional, pelo TJDFT, em sede de controle concentrado. O Arguente relata que tais sentenças teriam estendido a gratificação a docentes que tivessem em sala de aula pelo menos um único aluno especial – em desacordo, portanto, com o que ficou decidido em sede de controle concentrado. Nesse contexto, as decisões questionadas na ADPF valem-se do argumento de que “a decisão de inconstitucionalidade não possui o condão de esvaziar por inteiro o conteúdo da coisa julgada, sobretudo daquela materializada em situações jurídicas nas quais o trânsito em julgado da sentença condenatória ocorrera em momento anterior à inconstitucionalidade reconhecida”.
[2] Como consequência, conforme ficara anteriormente assentado na decisão monocrática proferida pelo Min. Rel. Marco Aurélio, foi cassado “o acórdão da Corte Especial do Superior Tribunal de Justiça, de 19 de dezembro de 2016, que implicou o desprovimento do agravo protocolado em face do trancamento do extraordinário interposto por Cooperativa Agrícola de Cotia – Cooperativa Central, em liquidação, no curso do agravo em recurso especial nº 724.365/SP”, além de ter sido requerida a remessa do feito ao Supremo para apreciação. O Vice-Presidente do STJ já havia determinado, à época da decisão monocrática (setembro de 2017), que os autos fossem enviados ao STF.
Rafael Gaia Edais Pepe
Marcelo Gaia Edais Pepe