A HOMOLOGAÇÃO DO ACORDO SOBRE OS PLANOS ECONÔMICOS NA ADPF 165
No último dia 01 de março, o Plenário do Supremo Tribunal Federal referendou decisão monocrática proferida pelo Min. Ricardo Lewandowski na ADPF 165[i]. Esta decisão homologou acordo coletivo entre as entidades bancárias e os representantes dos poupadores, envolvendo a tormentosa questão dos expurgos inflacionários decorrentes dos planos econômicos Bresser, Verão e Collor II[ii], com a mediação da Advocacia-Geral da União.
A matéria de fundo discutida nos autos é de inegável relevância: há milhares de poupadores diretamente interessados (idosos, em sua esmagadora maioria), as cifras envolvem alguns bilhões de reais e os litígios arrastam-se por décadas em todas as instâncias do Judiciário. Não à toa, o Min. Ricardo Lewandowski tratou a homologação da avença com cautela e pormenorização. A importância dessa decisão, no entanto, vai muito além do pagamento dos poupadores: sofisticadas questões processuais foram ali tratadas, levando o próprio Ministro a declarar que a decisão do Plenário “assume o caráter de marco histórico na configuração do processo coletivo brasileiro”.
Em primeiro lugar, um ponto que talvez tenha passado despercebido para alguns é o fato de o acordo ter sido mediado pela Advocacia-Geral da União (AGU). Embora os arts. 32, II, e 35 da Lei n. 13.140/2015 (Lei de Mediação) refiram-se apenas às pessoas jurídicas de direito público, é interessante observar o papel de protagonismo assumido pela AGU na formulação de uma solução consensual para essa controvérsia, de inegável interesse público[iii].
Em segundo lugar, note-se que a própria viabilidade do acordo nos autos de uma Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) é um tema peculiar. Não fosse suficiente a falta de previsão legal expressa, a ADPF não é classificada, em geral, como uma ação coletiva, mas sim como uma ação de controle concentrado de constitucionalidade. Apesar disso, é impossível ignorar a presença de um “notável conflito intersubjetivo” na ADPF 165, justificando o cabimento de uma solução amigável. Aliás, o seu impacto sobre direitos subjetivos explica, tradicionalmente, a abertura das ações de controle concentrado de constitucionalidade aos amici curiae e às audiências públicas. Por outro lado, a afirmação de que a homologação do acordo não implicaria “qualquer comprometimento desta Suprema Corte com as teses jurídicas nele veiculadas” buscou preservar a natureza abstrata da atividade jurisdicional desempenhada pelo Supremo na ADPF.
Em terceiro lugar, diante dessa dimensão subjetiva do conflito, houve uma preocupação com a “garantia de transparência e de efetivo controle democrático por parte dos cidadãos” sobre o acordo. Sendo assim, o Ministro Relator determinou a publicação em Diário Oficial da petição de homologação e do instrumento de acordo coletivo, com base no art. 94 da Lei n. 8.078/1990 (Código de Defesa do Consumidor – CDC)[iv]. Embora o art. 94 do CDC trate da publicação de edital quando proposta ação coletiva para a defesa de interesses individuais homogêneos, é salutar a aplicação analógica do dispositivo nesta hipótese, aliada à permissão de que pessoas eventualmente atingidas pelo acordo exerçam o contraditório efetivo.
Em quarto lugar, as partes propuseram a análise da pertinência da homologação do acordo sob o ângulo da “disponibilidade do direito transacionado”, da “representatividade adequada dos atores”, e da “vantagem advinda da transação para todos os interessados”. O Min. Ricardo Lewandowski, por sua vez, valeu-se de cinco critérios: (i) “se realmente houve uma declaração de vontade de reconhecer o pedido, de renunciar ao direito ou de ajustar mútuas concessões entre as partes”; (ii) “se a matéria comporta ato de disposição”; (iii) “se os contratantes são titulares do direito do qual dispõem total ou parcialmente”; (iv) “se são capazes de transigir”; e (v) “se estão adequadamente representados”[v].
Sobre a disponibilidade do direito, questionou-se a possibilidade de os celebrantes preverem a suspensão obrigatória de todos os processos, inclusive envolvendo outras partes, durante o prazo para adesão aos termos do acordo, de 24 (vinte e quatro) meses. Sobre essa questão, o Ministro Relator ressaltou que o contrato “não prevê a suspensão das ações durante o prazo de adesão ao acordo”, mas sim “que decorrido o prazo de 24 (vinte e quatro) meses, não será mais possível aderir ao acordo, caso em que ações judiciais prosseguirão em seu normal andamento”. Preservou-se, de todo modo, a voluntariedade na adesão ao acordo para os autores individuais e os exequentes de ações coletivas transitadas em julgado. Acerca da representatividade adequada, afirmou o Ministro Relator que “o acordo foi firmado por entidades com um relevante histórico de defesa dos interesses de seus associados e com notório interesse e participação em ações coletivas relativas ao tema dos planos econômicos heterodoxos”.
Por fim, percebeu-se uma nítida preocupação em incentivar um sistema de “justiciabilidade privada de direitos”, no qual advogados e pessoas de direito privado se sentissem estimulados a promover a tutela de interesses públicos pela via da ação coletiva. Assim, dispensou-se a autorização legal para a celebração da avença – e isso apesar de o §6° do art. 5º, da Lei n. 7.347/1985, atribuir apenas às pessoas jurídicas de direito privado a iniciativa para a celebração de Termos de Ajustamento de Conduta em ações civis públicas. Do mesmo modo, o Min. Ricardo Lewandowski acentuou os benefícios da adoção de um sistema de “honorários contingentes”, fazendo com que as associações recebam uma retribuição pelo trabalho prestado e incentivando a atuação dos autores coletivos.
Por todos esses motivos, a homologação do acordo realizada pelo Min. Ricardo Lewandowski e referendada pelo Plenário do Supremo é verdadeiramente paradigmática para o futuro do processo coletivo brasileiro. Entretanto, sobre a sua aplicação a casos análogos, bem como acerca do desenvolvimento de um sistema de “justiciabilidade privada de direitos”, só o futuro dirá.
[i] O acórdão do Plenário ainda não foi publicado. As informações relacionadas ao julgamento colegiado foram colhidas do Informativo n. 892, do STF. Já a decisão monocrática do Min. Ricardo Lewandowski, publicada no dia 19 de fevereiro de 2018, encontra-se disponível no andamento do processo no site do Supremo Tribunal Federal (http://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=2665693).
[ii] Em relação aos expurgos inflacionários atinentes ao Plano Collor I, ficou acordado que não será devido qualquer pagamento.
[iii] Durante sua palestra no “Seminário Internacional AGU 25 anos: Segurança Jurídica para o Brasil”, no dia 08 de março, a Presidente do Supremo, Ministra Cármen Lúcia, destacou o papel decisivo da AGU neste acordo (http://observatoriodoprocessostf.com.br/noticias-do-stf/presidente-do-stf-destaca-importancia-da-advocacia-publica-para-democracia/).
[iv] Disponível em http://www.migalhas.com.br/arquivos/2018/2/art20180201-10.pdf. Acesso em 11/03/2018.
[v] Os critérios utilizados pelo Min. Ricardo Lewandowski são originalmente propostos pelo professor Cândido Dinamarco.
Rafael Gaia Edais Pepe
Marcelo Gaia Edais Pepe